No famoso romance distópico “1984”, de George Orwell, os habitantes vivem em uma guerra perpétua, sob a vigilância onipresente de um super estado e um regime totalitário em que o próprio pensamento é considerado um crime.
A suposta entidade por trás das cortinas é o Grande Irmão, “Big Brother”, que vigia você pela teletela, uma versão futurística da televisão (o Reality Show “BBB” onde o telespectador vigia os participantes o tempo todo faz alusão ao tema, por sinal).
A proximidade do romance com os dias atuais é tão assustadora que, tendo lido o romance tantas vezes em minha vida, sempre me pego pensando se não utilizaram o livro para fazer a engenharia social nas últimas décadas.
O ministério da verdade e as agências de fact checking, a novilíngua de Orwell e as manchetes dos jornais e portais de notícia com palavras como “desmelhorar” e o falatório da classe política que, ao dizer algo, refere-se precisamente ao contrário – tal e qual o conceito do duplipensar da Ingsoc.
A quantidade de artigos acadêmicos ou mesmo livros inteiros escritos e que tentam explicar o significado de 1984 é infindável. Confesso que li uma boa parcela dos livros, tamanha a paixão que tenho pela obra. Exploram-se temas profundos como a possível conexão entre o livro e o centenário da socialista Sociedade Fabiana, a decepção com a guerra fria, a linguística como instrumento de engenharia social e por aí vai.
No livro 1984, o livro em si é um agente importantíssimo. O personagem central do livro, Winston Smith, trabalha como funcionário do Ministério da Verdade, precisamente apagando informações históricas e editando o teor de notícias e pronunciamentos impressos de acordo com os interesses do partido – uma espécie de produtor de fake news a serviço do governo.
O “revisionismo histórico com teor ideológico e/ou político” de Winston é corriqueiro nos dias atuais, favorecido pela tecnologia. Apenas como exemplo, o “movimento cético” de Susan Gerbic, dedica centenas de milhares de horas na edição de artigos da Wikipedia, adulterados por pessoas ou grupos que advogam temas como o terraplanismo, teorias da conspiração, alterações das biografias de personalidades públicas etc.;
O fato é que, no romance imaginado por Orwell, era possível editar manualmente qualquer impresso.
As versões anteriores eram recolhidas e destruídas e a sustentação da mentira ficava a cargo da eficiência dessa intrincada logística. Em um dado momento do livro, explica-se que era instintivo recolher qualquer pedaço de papel do chão e imediatamente desova-lo no sistema de túneis de ar que levava a apara a um sistema automático de destruição.
Hoje, com a proliferação da leitura em meios digitais, o Partido teria colhido benefícios ainda maiores em seu modus operandi de edição constante da história, da pós-verdade e da checagem de fatos enviesada.
A Amazon já retirou da sua estante virtual de vendas uma quantidade expressiva de publicações com viés ideológico danoso de acordo com as premissas da companhia. Livros que tecem críticas ao transgenerismo, obras de cunho religioso que apresentam sua visão particular sobre a homossexualidade, um livro que denuncia a violência do movimento “antifa” e assim por diante.
O impresso, indelével, é hoje em boa parte dos casos, o único registro histórico de certas civilizações há muito desaparecidas, bem como em breve pode vir a ser o único registro da pluralidade das ideias humanas – do Manifesto de Marx até A Riqueza das Nações de Smith, da Bíblia de autores desconhecidos a Deus Está Morto, de Nietzsche.
O conhecimento que vaga no éter da internet é passível de edição, terrorismo digital e censura por clique e manipulação de algoritmos.
O conhecimento registrado no mundo tangível das páginas impressas é o contraponto que resiste, como os papiros, à ação deletéria dos censuradores.
O futuro distópico de Orwell nos ensina, dentre tantas outras coisas, que a indústria gráfica e os impressos serão uma salvaguarda importante à fugacidade da internet. Vamos torcer.
Leia mais em nosso blog:
Estamos ou não lendo mais durante a pandemia?