Continuando a nossa pauta especial em que assumimos o compromisso de debater eventuais soluções para mitigar a crise que afeta, dentre outros setores, o nosso ramo gráfico e convertedor, prosseguiremos com o tema do risco associado ao suprimento de matérias-primas.
Apenas para citar um exemplo, praticamente todo o fornecimento de microchips do planeta – usados em computadores, smartphones, automóveis e equipamentos militares – reside em Taiwan (o país produz mais de 90% da produção asiática, que corresponde a mais de 75% do fornecimento global), um país que vive em constante ameaça militar pela República Popular da China.
A própria invasão da Ucrânia pela Rússia ilustra a dependência e a fragilidade das cadeias de suprimento: a Europa inicia uma corrida desenfreada para reduzir a dependência do gás e petróleo russos, pari passu o Brasil busca uma rota alternativa para as 40 milhões de toneladas anuais de fertilizantes NPK (nitrogenados, fosfatados e potássicos) importadas da Rússia e que são o pináculo da produção agrícola nacional.
O mercado de grãos, em especial o de trigo, demonstram nos preços negociados a futuro, o impacto da crise militar russo-ucraniana, dupla que representa mais de 30% da exportação do planeta e que, segundo a Abitrigo (Associação Brasileira do Trigo), embora já tenha escalado quase 40% nos preços, está longe de estabilizar.
A qualquer instante, um “Cisne Negro” pode eclodir nalguma parte do planeta, com capacidade para interromper ou, na melhor das situações, restringir a oferta e impactar tão duramente nos preços que torna o repasse pleno na ponta algo impossível, ao menos num curto espaço de tempo.
Desastres naturais como furacões, enchentes e invernos irregularmente rigorosos são alguns destes eventos que temos nos habituado, cada vez mais, a contingenciar. Alguém lembra do recém congelamento das refinarias do Texas, Estados Unidos, e o seu impacto na oferta e nos preços das resinas termoplásticas?
A incerteza geopolítica tem, como uma das consequências, a guerra tarifária entre nações. É bastante provável que veremos novo e constante ordenamento de medidas protecionistas, com forte viés ideológico e geopolítico. Poderíamos ilustrar com as mudanças tarifárias, aumento dos lead times, aumento dos custos administrativos, dispêndio de capital com inventário e, por fim, aumento de preços dos veículos no Reino Unido após o Brexit.
Vimos também, após a pandemia da Covid-19, uma sutil mudança de eixo no mercado norte-americano, para reduzir a importação de produtos da China – especialmente no auge da doença, onde a suspeição sobre a forma de propagação do vírus em superfícies como as embalagens plásticas era atroz. Todavia, isso deve mudar.
Empresas tem decisões a tomar muito parecidas com os governos, mas geralmente numa escala bem menor. Governos precisam avaliar estrategicamente a preservação da sua economia e posicionar-se diplomaticamente em certos assuntos delicados, pensando preferencialmente não só em termos de um mandato, mas além.
As companhias, por sua vez, precisam estar atentas às principais mudanças geopolíticas – e antecipar-se na intensificação ou não de relações com fornecedores de um dado país ou bloco, com a solvência ou não destes grupos e assim por diante. Enxergar dinâmicas muitas vezes antagônicas como a maior agressividade comercial da China na América Latina e o esforço de aproximação e revitalização da indústria norte-americana e tomar partido em termos de cadeia de suprimento.
E aí, chegamos ao ponto central deste artigo de número dois. O grau de inteligência e profissionalismo do setor de compras do nosso ramo.
A maioria das empresas, ainda com gestão familiar, é mais responsiva em compras do que propriamente “estratégica”. Isso pode parecer estranho, quando levamos em consideração que matérias-primas costumam representar algo entre 50 a 60% do custo total de fabricação de embalagens, etiquetas e rótulos.
Poucas gráficas e convertedoras investem recursos, por exemplo, na automação dos processos de compra e na inteligência de mercado, para antever as disrupções da cadeia de suprimentos. *
Existem diversos “mapas estratégicos” à disposição para pensar nos riscos associados à atividade de compras. Basicamente, todos eles acabam classificando o risco em grupos de maior ou menor possibilidade de antecipação e severidade.
Riscos de baixo impacto e difíceis de antever são, por exemplo, a falência repentina de um fornecedor ou mesmo o fechamento de um fornecedor em virtude de conflito militar ou resolução governamental num ambiente de negócios com grande interferência estatal.
A compra de folha de alumínio para impressão e laminação de empresas russas é, neste instante, uma boa ilustração do problema. Felizmente, esta situação se resolve facilmente, com uma política de compras de dois ou mais fornecedores (observando para que o volume de compra não seja diluído em uma miríade de fornecedores, de tal forma que o poder de barganha se exaure).
Uma falha comum da área de compras nesse aspecto é a de não se preparar para a substituição de um fornecedor com um trabalho técnico e meticuloso de identificação de contratipos; é preciso ter sempre pré-validada a equivalência técnica, de qualidade e performance (maquinabilidade) de uma matéria-prima do fornecedor A para o portfólio de B e C.
Riscos de maior grau de impacto e difíceis de antever abrangem uma série de fatores, tais como os já citados desastres naturais, cyber ataques ou ameaças repentinas à saúde pública (como está sendo a pandemia). O monitoramento e previsão da redução de capacidades nos fornecedores permite um dimensionamento do pior cenário de buffer (estoque pulmão) até que a normalidade se reestabeleça na parte atingida. Mecanismos de seguros e hedge cambial também são essenciais para o enfrentamento do problema.
Riscos de baixo impacto e fáceis de se antever podem derivar de inúmeros fatores, tais como disputas trabalhistas, mudanças de marco regulatório ou até preferências do consumidor (a exemplo da pressão pela redução de plásticos de uso único). Sistematizar as informações dos fornecedores, do processo de compra e acompanhar periodicamente relatórios e/ou serviços de inteligência de mercado (DataMark, PlasticMatrix, Maxiquim, Platts etc.) é uma estratégia vencedora para prever a direção do vento.
Riscos de alto impacto e fáceis de se antever dizem respeito às grandes mudanças geopolíticas que darão a tônica das relações nos próximos anos: a nova guerra fria entre o ocidente (União Europeia, Israel e Estados Unidos) e a aliança sino-russa, a descarbonização (ou esverdeamento) da economia – embora talvez a crise energética deflagrada justamente pela dependência europeia do combustível russo possa dar uma nova matiz à questão – e a migração gradual da economia linear para a circular são apenas algumas das grandes questões que influenciarão a cadeia de suprimentos adiante.
O desenvolvimento econômico de regiões que passaram ou passarão a integrar a nova rota da seda chinesa afetarão o escoamento de portos e aeroportos; o direcionamento de países e governos em busca de uma maior ou menor abertura econômica e a sua necessidade de importação de commodities também são fatores que se deve ter no radar na hora de decidir por clusters de fornecedores.
Apenas para trazer uma questão prática: é preciso se perguntar se haverá, no curto e médio prazos, novas capacidades mundiais (e onde) para a produção de glassine ou se é inexorável pensar em soluções de liner filme ou linerless, por exemplo.
A profissionalização do setor de compras não passa, logicamente, apenas por questões externas e estratégicas.
Cabe às indústrias gráficas e convertedoras, investir na informação para negociar volumes anuais, ao invés de olhar sempre “da mão para a boca”. A maioria dos fornecedores de matérias-primas pensa em termos de “campanha” (escala, palavra de ordem no mundo das commodities). Tratar volumes individuais de compra por ordem de produção do cliente final, quase sempre leva a uma redução do poder de barganha e, por conseguinte, a um preço elevado.
Quando se sentar na mesa para discutir, tenha sempre em mãos o forecast anual e o desembolso no ano anterior. No mundo volátil em que vivemos, volume, recorrência e cumprimento de acordos é uma moeda valiosa demais.
Certa vez li um livro ótimo, mas apavorante, sobre redução de custos e maximização dos resultados. A capa do livro (Dobre seus lucros, de Bob Fifer) menciona com grande destaque que ele é “o livro de cabeceira de Marcel Telles, fundador da Ambev”.
Há capítulos com grande riqueza de detalhes de como “espremer seus fornecedores”, com técnicas de como criar níveis de negociação com metas individualizadas de redução dos valores das faturas, como arranjar um “vilão” para justificar o aperto, como decretar congelamentos e cortes e como “partir para um segundo ataque” usando estratagemas psicológicos na negociação.
Eu, honestamente, acho que este modelo não se sustenta. Especialmente quando falamos de um setor em que os clientes são quase sempre, bem menores em porte do que seus fornecedores. É preciso buscar a “parceria”, e tentar, portanto, tangibilizar melhor este conceito para absorvê-lo e adotá-lo no seu dia a dia.
Sempre que se fala em parceria, se associa a uma relação “ganha x ganha”, mas este tipo de relação é utópica. Para que se construa uma parceria, ambas as partes devem estar igualmente dispostas a “perder” algo. O mais apropriado seria uma relação “perde x perde”. Quando todos estão dispostos a “dividir o pedaço”, como bem diz a raíz etimológica de parceria, há um ganho coletivo e sustentável no tempo.
A gráfica estando disposta a abdicar de um pouco de sua liquidez, por exemplo, em prol de um preço e um volume de compra mais competitivos – sustenta que o fornecedor abdique de parte da sua margem.
E aqui entra o aspecto mais crítico da área de compras. O profissional de compras deve possuir duas habilidades complexas – uma técnica, analítica e objetiva, que permita olhar o cenário macro, desenhar e executar estratégias para comprar defensiva e ofensivamente frente a todos os riscos que mencionamos. E uma subjetiva, humana, emocional, que possibilite uma negociação sadia em meio à turbulência e instabilidade emocional da outra parte vendedora.
É estranho pensar que estes profissionais não são rotineiramente treinados em nenhum destes dois aspectos. E isso acaba levando o profissional a pautar-se exclusivamente pelo critério do preço e do serviço.
No primeiro caso, o preço nem sempre se traduz em rendimento. Um dos exemplos mais crassos da nossa área é comprar tinta pelo preço do quilograma. Nem sempre a tinta mais barata é aquela que cobre a maior área quadrada, cumprindo as especificações de qualidade (densidade relativa ou espectral, Delta E, brilho etc.) dos clientes.
No segundo caso, a falta de controle emocional interfere e põe em risco as relações comerciais da empresa junto aos seus fornecedores, e não precisamos ser redundantes em voltar a debater os impactos estratégicos desta erosão.
Por fim e como sempre, a realidade atual é complexa e não permite mais amadorismo. É melhor estar do lado dos que anteveem as crises, do que os que as contingenciam. Para tal, investimento em tecnologia, automação dos processos, simulação e previsão de cenários (inteligência de dados) e profissionais qualificados são os pilares essenciais de qualquer empresa – particularmente nas que, como nós, atuam em mercados cujos produtos são altamente personalizados, entregues de forma fracionada e em pequenos lotes, em lead times apertados e que demandam uma flexibilidade suficiente para suprir mudanças repentinas na demanda dos consumidores.
Sai o comprador, entra o estrategista de cadeia de suprimentos. Boa sorte!
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