No famigerado romance distópico de ficção científica soft escrito por Ray Bradbury (publicado pela primeira vez em 1953 e adaptado para o cinema em 1966, por François Truffaut), os habitantes vivem numa América hedonista, anti-intelectual onde livros são considerados ilegais e – uma vez encontrados na posse de alguém – são queimados por “bombeiros especializados”.
O nome do romance, Farenheit 451, faz alusão à temperatura da queima do papel.
O protagonista, Guy Montag, é um destes bombeiros que, dando continuidade ao métier do pai e avô, tem a convicção de que queimar livros ou mesmo a casa dos que os abrigam, arrestar seus bens e encarcerá-los é o único caminho correto a ser seguido.
É importante lembrar que, em diversos momentos da nossa história, tivemos lamentáveis episódios de queima de livros.
No dia 10 de maio de 1933, por exemplo, foram queimados em praça pública em diversas cidades alemãs as obras de escritores alemães em desacordo com o regime nazista. A prática é antiquíssima. Poderíamos enumerar tantas outras passagens como a queima da biblioteca de Bagdá (1258), a de Alexandria (300 a.C.), a queima de livros durante a dinastia chinesa Qin ou mesmo a extinção dos documentos promovida pelo imperador azteca Itzcoátl.
Para alguns seres humanos, ideias contraditórias são tão incômodas que precisam arder em chamas.
O que pouquíssima gente sabe é que o autor em pessoa, numa entrevista em 2007, afirmou que sua obra é recorrentemente mal interpretada. A faceta da censura não é a mensagem central que ele almejava passar, mas o impacto da televisão e da mídia de massa na prática da leitura.
Ou seja, mais perigoso do que queimar livros impressos é simplesmente ignorá-los em definitivo, substituindo inicialmente pela caixa bestificante (a televisão) e, posteriormente, pelo “black mirror” dos smartphones, computadores pessoais e outros gadgets conectados.
Talvez Bradbury tenha se olvidado que também há muitas formas mais geniosas e sutis de se queimar livros, que dispensam a energia calorífica do fogo e, tampouco, requerem um esforço no sentido de preencher a atenção do leitor com outras distrações como a internet e as redes sociais.
Um destes mecanismos é encarecer as obras (impostos) para que a camada social que mais precisa da cultura e da informação contidas nos livros fique impossibilitada de acessá-las. Há pouco tempo, vivenciamos a polêmica da taxação de livros por aqui.
Outra forma criativa de queimar livros é controlar o mercado editorial a ponto de estrangular autores com conteúdos indesejáveis, eliminá-los gradual e sistematicamente e ditar, por seleção não natural, os conteúdos de interesse. Isso vem sendo feito em escala global, numa “parceria público-privada” chamada Amazon.
Em 2018, por exemplo, a Bigtech registrou uma receita de vendas superior a USD 11 bilhões, tendo pago a bagatela de Zero dólares em impostos federais. Seu controle do mercado editorial – com a plataforma Kindle, os canais de venda e os algoritmos que apresentam (ou não) sugestões aos potenciais leitores, a Amazon é alvo constante de acusações de práticas monopolistas.
Ao invés de queimar livros, em 2020 no epicentro de uma disputa com o grupo de mídia francês Hachette, a Amazon fez de tudo para limitar o acesso às obras da editora (que é uma das maiores em marketshare nos EUA). Isso incluiu o cancelamento de campanhas de pré-venda, redução de descontos, atraso de envio de cópias físicas, a sugestão de livros de outras editoras e o aumento dos percentuais de desconto em e-books, como forma de reduzir a margem de lucro da editora.
Tudo isso sem riscar um fósforo sequer.
A questão é que os livros são, talvez, a maior tecnologia já criada pela humanidade, pois combatem exatamente a nossa maior maldição como espécie: a falta de memória. É nas páginas impressas que resistem ao tempo, que podemos nos de recordar nossos erros e acertos e evoluir.
Sem o registro, seremos como o mito de Sísifo – fadados a rolar diariamente a pesada pedra montanha acima e por todo o sempre.
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