Adianto aos amigos o editorial que acabo de escrever para a primeira edição do ano (Jan/Fev 17) da nossa revista. Gostaria de ouvir a opinião dos colegas para que eu possa incluir algo em sua última revisão. Abraços a todos, Aislan.
Grande parte dos problemas do nosso país (e das nossas empresas) se resume à “falta de cultura”. Essa suposta ausência acarretaria, dentre tantas outras implicações negativas, na supressão de uma identidade nacional ou no sentido de unidade de um grupo qualquer.
Existem incontáveis acepções para a palavra cultura. Uma das mais recorrentes e de âmbito generalista foi formulada pelo antropólogo britânico Edward Burnett Tylor, um autêntico representante do evolucionismo social: “cultura é todo aquele complexo que inclui o conhecimento, as crenças, a arte, a moral, a lei, os costumes e todos os outros hábitos e capacidades adquiridos pelo homem como membro da sociedade”.
O hábito da leitura é uma parte importante na formação cultural. Uma pesquisa recente intitulada “Retratos da leitura” apontou que 44% da população brasileira não lê e que 30% jamais comprou um livro. Um relatório ainda mais atual (editado no fim de dezembro do ano passado por uma empresa de pesquisa de mercado e estudos sobre o setor editorial, a GFK) listou os 10 livros mais vendidos no Brasil em 2016. Quatro, dos dez livros da lista foram escritos por “YouTubers” (em sua maioria, adolescentes contando as peripécias para criar um Vlog), outros dois são religiosos e o restante, romances no bom estilo “Cinquenta Tons de Cinza”.
Ou seja: os 56% dos brasileiros que leram o irrisório índice de 1,7 livros ao longo do ano (nas palavras do próprio ministro da Cultura, Juca Ferreira, um índice “vergonhoso”) preferiram RezendeEvil, AuthenticGames e Kéfera Buchmann a Leo Tolstoy, Mark Twain e Charles Dickens (ou João Guimarães Rosa, Graciliano Ramos e Jorge Amado, como queira).
1. “Como Eu Era Antes de Você” – Jojo Moyes – 291.190 exemplares vendidos;
2. “Ruah” – Padre Marcelo Rossi – 200.368 exemplares vendidos;
3. “Depois de Você” – Jojo Moyes – 179.822 exemplares vendidos;
4. “Autenthic Games – Vivendo uma Vida Autêntica” – Marco Túlio – 116.204 exemplares vendidos;
5. “Dois Mundos, um Herói” – RezendeEvil – 100.499 exemplares vendidos;
6. “Philia Padre” – Marcelo Rossi – 93.999 exemplares vendidos;
7. “Muito Mais que 5inco Minutos” – Kéfera Buchmann – 91.501 exemplares vendidos;
8. “A Coroa” – Kiera Cass – 90.422 exemplares vendidos;
9. “Grey” – E.L James – 85.977 exemplares vendidos;
10. “Segredos da Bel para Meninas” – Bel & Fran – 84.795 exemplares vendidos.
Ouvir boa música também é um fator preponderante na formação cultural do indivíduo. Das 10 mais tocadas nas rádios brasileiras em 2016, reinou absoluto o estilo sertanejo comercial, seguido do funk “proibidão”. A campeã nacional, com 70 mil e seiscentas execuções, “Seu Polícia” (da dupla Zé Neto & Cristiano) conta a um policial fictício, em quatro estrofes que se repetem indefinidamente, que “os vizinhos estão reclamando do som alto, mas pode mandar a multa que ela vai ser paga”. Uma típica desilusão amorosa que justificaria transgredir a lei do silêncio e dirigir alcoolizado.
Estamos cada vez dedicando mais tempo de vida à internet e redes sociais. O que procuramos e como interagimos com as pessoas é, decerto, parte integrante desse caldo cultural. Em 2016, enquanto o mundo procurou no Google por informações sobre as eleições americanas, as Olimpíadas, a saída da Inglaterra da União Européia (Brexit), o atentado de Orlando e o Zika Virus, os brasileiros garimparam por informações sobre o bloqueio do Whatsapp, Big Brother Brasil, MC Bin Laden e o significado da palavra “Crush”.
(Informações detalhadas das buscas no Google que fizemos em 2016 podem ser obtidas no site: http://www.google.com.br/trends).
Segundo o próprio Facebook, 45% da população brasileira acessa a rede social mensalmente (92 milhões de pessoas). Gastamos, em média, 50 minutos por dia no site de Mark Zuckerberg – o que significa mais de 6% do tempo útil. Se somarmos esta cifra ao tempo empregado para ler e-mails e mensagens em serviços como o Whatsapp, é possível inferir que o brasileiro médio gasta mais tempo conectado do que fazendo exercícios, comendo ou em qualquer outra forma de lazer. A informação recebemos ou compartilhamos lá, portanto, é boa parte de nosso acervo cultural em médio e longo prazos.
Em 2016, a página mais curtida pelos brasileiros no Facebook foi a do craque do futebol Neymar Junior. Enquanto escrevia estas linhas, as últimas postagens eram ou mensagens publicitárias (de lâmina de barbear a aplicativo para gerar emojis com a cara do jogador) a fotos pessoais do atleta.
Sobre a tal “moral, leis e costumes” citados na definição de cultura, um último comentário contextualizado em uma breve cronologia:
– Há duas semanas, o país escandalizou-se com um “acidente” aéreo que pôs em xeque o destino da Lava-Jato – o maior escândalo de corrupção da história moderna em âmbito mundial. Não faz ainda uma semana quando o “ex brasileiro mais rico do mundo”, “ex ícone do sucesso empresarial nacional”, “ex estandarte do empreendedorismo e filantropia” Eike Batista está foragido por crime de corrupção. Há exatamente um dia, o novo prefeito com menos de um mês no cargo, João Dória Junior, enfrenta pesadas críticas nas redes sociais (aquelas em que passamos mais de 6% do dia) por ter removido pichações de monumentos e obras públicas e, ocasionalmente, coberto algum grafite.
Pela primeira vez até onde me lembro, vejo gente se manifestando a favor da “cultura”. Pela liberdade de expressão e o direito de descaracterizar (e emporcalhar) o patrimônio público ou privado.
Lamentavelmente, é este conjunto de coisas que o brasileiro tem respirado e chamado de cultura. Quando a consumimos, é pouco, quase nada, e com qualidade questionável. Quando a defendemos, invertemos os valores. E assim, emburrecemos mais a cada dia que passa. Mas tudo bem, afinal, “tá tranquilo, tá favorável”.